domingo, 24 de agosto de 2008

Bicho autista

Por Camila Muccini

Todos os dias passo em frente ao mercadinho da rua Laurindo para ir para minha casa. Às vezes, até compro alguma coisa. O mercadinho é bom, limpinho, o dono é cuidadoso e tem uma certa variedade de produtos. Contudo, o que mais me intriga nesse estabelecimento é o cachorro do dono. Sim, aquele bicho preto, peludo com o rabo enorme e cara de morcego.

Todos os dias vejo aquele cão com aquela mesma cara, altivo, como se o resto do mundo nem existisse. Assobio, chamo, faço barulho com as mãos e nada. De vez em quando passo bem ao lado dele e tento puxar algum assunto, mas ele sequer move o pescoço, muito menos os olhos. Eu não existo para ele. "Cachorro autista"– fico praguejando mentalmente. Ai que raiva que me dá... Ultimamente decidi usar outra tática para que o bichano note a minha presença. Faço questão de passar por ele e cutucá-lo, mexer com ele até que ele se de por conta que sou da vizinhança e que existo. Na última vez que fiz isso, ele não gostou muito. Ficou rosnando para mim...mas continua a me ignorar. Talvez ele só admita o mundo animal. Mas não! Ele responde ao dono... Então ele pode ser um cão fiel... ou possessivo. Ah, não! Cachorro é cachorro. E cachorro esperto tem que se ligar nos barulhos que estão a sua volta. Aliás, ele tem estar antenado aos meus barulhos! Como pode um cão ser tão indiferente a minha – repito, A MINHA – presença? Indiferença gera raiva... "Ah bicho danado!"

Todos os dias andando pelas ruas da cidade, não dificilmente, deparo-me com moradores de rua. Pessoas que estão jogadas no chão, andando sem rumo, pedindo um trocado, passando frio nesse inverno de rachar... Muitas vezes, por medo de ser abordada, finjo que não os vejo, tento passar sem desviar minha atenção para ver o que a miserabilidade humana é capaz de produzir no mundo – a desigualdade.

Todos os dias essas 'pessoas' estão sendo ignoradas. Isto porque, atualmente, o caráter de cidadão varia com a quantidade de bens que se pode consumir. Quanto mais se compra, mais se é cidadão e mais se têm direitos – esse é o brilhante modo de viver que estamos reproduzindo cegamente... Inúmeras vezes nos defrontamos com esses "zés ninguéns" e, muitas vezes, o que fazemos? Ignoramos. Talvez seja por isso que alguns deles – como eu fiz com o cão – tentem nos chocar, nos tocar, chamar nossa atenção, para notarmos que, de fato, eles existem e são uma pessoa, e não um ser anônimo. Ah! (um estalo ocorre em minhas conexões sinápticas) Ignorei certos mendigos da mesma forma como o bendito cão continua a me ignorar... Seres humanos e sua eterna contradição...
Pela primeira vez, acho que pude ter alguma noção do que é ser invisível.
Imaginem, então, comigo: se a indiferença de uma mero cão me causa tanta raiva, qual será o efeito em um ser humano que, cotidianamente, não existe?


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